[On]
Arredores de Morroc, quadrante 03.
05:22 AM.
Cheguei em casa lá pelas 5 da manhã. O sol ainda nem sonhava em nascer, e por conta disso quase me perdi no mato. Devo estar muito atordoada, mesmo, pra ter me perdido naquele arvoredo que conheço tão bem. Pior do que isso, só se eu me perdesse no feudo onde nasci...
Pra minha surpresa, Roberuto estava de pé, zanzando pela casa totalmente atarantado. Claro, ao jeito dele. Levou um susto quando me viu, e começou a me interrogar, perguntando tudo o que tinha acontecido. Ele já sabia que eu tinha sido presa; isso virou notícia em toda Morroc, e tudo que acontece por lá chega aos ouvidos dos mercenários em primeira instância. Fez questão de observar meu corpo, pra ver se eu não tinha nenhuma marca, cicatriz ou sinal de tortura, e de perguntar sobre a criança. Foi uma das primeiras coisas que ele fez, aliás.
Até aí, correu tudo como eu planejei: tomamos café juntos, contei a ele tudo o que aconteceu, depois fomos dormir. Acordei lá pelas 3 da tarde, com o almoço e uma bronca me esperando. Ele estava feliz por não ter acontecido nada no final, mas me repreendeu por ter sido tão descuidada e não ter lutado como devia. Aliás, eu nem devia ter lutado.
Ele contou tudo o que tinha se passado durante a minha ausência: ele descobriu pela Guilda dos Mercenários que eu havia sido capturada, e que estava sob a custódia de Akahai Shora em pessoa. Depois, ele chamou cada informante que conseguiu encontrar, e foi reunindo as informações: em que cela eu estava, o que se passava, o horário da segurança, a alimentação. Na verdade, me surpreendeu o fato de que ele sabia mais coisas do que eu. Estava tão atordoada na prisão que nem lembro o que comi.
Tomei um banho e troquei de roupa. Depois disso, fui forçada a deitar de novo. Fazer o que... ao menos aqui posso dormir sem medo de acordar com um furo a mais.
17:56 PM.
[Off: Aqui meio que muda o ponto de vista xD A coisa começa a acontecer mesmo, ela não está só narrando.]
Foi estranho.
Num instante, eu estava de olhos fechados, apenas sentindo a maciez da cama nas minhas costas. Estava tão leve que quase dava pra sentir a tatuagem na minha pele. Então, abri os olhos, e não estava mais deitada; estava flutuando. Ao redor, nada, a não ser uma escuridão profunda. Porém, não era como a escuridão de Ifaro; eu não estava com medo, nem assustada, nem receosa, nem nada disso. Não havia o que temer, eu estava tranqüila...
De repente, tudo mudou: uma espécie de brisa soprou, me deixando mais leve e tranqüila ainda... mas ao mesmo tempo, parecia que tinha mudado alguma coisa. É quase como se ela tivesse me atingido por dentro...
Senti algo tocando meus pés. Quando olhei pra baixo, havia um círculo desenhado ao meu redor. Mesmo assim, não senti medo. Era como se alguém estivesse passando um lápis invisível, que deixava uma marca de luz nas trevas, e ia desenhando...
O círculo começou a ser preenchido com uma espécie de líquido, vermelho-enegrecido, como se fosse lava, mas ao mesmo tempo tão diferente... aquilo começou a borbulhar, e 4 pilares surgiram ao meu redor. As bolhas, então, dispararam e colaram no meu corpo. Era frio, mas ao mesmo tempo aconchegante. Era como um abraço, como uma canção de ninar, algo tão relaxante...
Quando fui totalmente coberta pelas bolhas, o líquido e os pilares derreteram e tudo escorreu, voltando para o círculo inicial. E outro círculo apareceu, no “chão” bem em frente a mim, feito do mesmo líquido. Novamente os pilares se ergueram, e as bolhas foram caindo, agrupando-se e formando algo. Quando elas se desprenderam, havia uma pessoa ali, parada, me encarando.
Eu mesma.
A outra Lenna piscou lentamente, como se não tivesse mais nada pra fazer na vida. Os pilares derreteram, os dois círculos sumiram, ou melhor, se apagaram. Então, ela estendeu a mão pra mim, e eu fiz o mesmo. Sua expressão estava séria, o olhar gélido. A brisa soprou novamente, e ela sussurrou algo bem baixinho, algo que não consegui ouvir... e um calor enorme no peito...
Bem nessa hora, abri os olhos. Olhei ao redor, meio atordoada, e me deparei com o quarto de Roberuto, com as janelas abertas e um cheiro de mato no ar. Era noite; dava pra ouvir o barulho das cigarras ao longe, e o farfalhar das folhas sacudindo com o vento.
Rolei na cama, tentando dormir de novo, mas estava acordada demais. O sonho não saía da minha cabeça. E por alguma razão, minhas mãos estavam estranhamente quentes, não um calor comum, mas como se uma estranha energia estivesse concentrada nelas...
Já estava desistindo de tentar ver a continuação, quando um barulho lá fora me chamou a atenção. Era algo chamativo demais para ter vindo de Roberuto, já que ele normalmente era sorrateiro como um gatinho. Mesmo assim, meu sexto sentido dizia que não era nada para se preocupar, então apenas levantei e me espreguicei, sem muita pressa de ir ver o que era. Mas não foi preciso fazer isso, porque no momento em que ergui os braços, a porta se abriu.
- Lenna-san! – Kyrie entrou no quarto, sorridente como sempre. Ao ver que eu estava acordada, correu ao meu encontro, me dando um abraço apertado e aconchegante. Depois, me encarou. – Nossa, você está muito bem pra quem esteve uma semana nas mãos do seu “pior inimigo”!
Ela fez um gesto estranho com as mãos ao dizer o “pior inimigo”.
- É uma longa história... – virei pro lado meio envergonhada; não queria falar do que aconteceu de novo. Mesmo assim, não consegui disfarçar que a presença dela ali me animava.
- E devo dizer que essa roupa nova combinou bem com você! – ela pôs a mão em meus ombros, sorrindo como uma criança ao ver minha vestimenta, um baby-doll branco e verde com estampa de coalas. – Sabe, fica muito melhor do que aquele seu uniforme de arruaceira. Devia considerar usá-lo mais vezes...
- Acho que não, obrigada. – empurrei-a delicadamente. – Não seria nada divertido sair atacando pessoas de pijama. E uma idéia maluca dessas só podia ter vindo de você...
A sacerdotisa sorriu como se aquilo fosse um elogio. Então, sem aviso nenhum me empurrou na direção da cama.
- E você pode ir deitando aí, mocinha! Roberuto está preocupado com vocês dois, então vamos já fazer um exame!
Era no mínimo engraçado ver aquela garota baixinha me empurrando. Apenas me deixei levar. Acho que só quem teria tal intimidade comigo além dela seria Lilium. Por um instante a imaginei naquela situação, se divertindo com a idéia de ser tia, e meu coração apertou.
Deitei na cama e tirei a parte de cima da roupa, pra ficar um pouco mais confortável. Kyrie começou a tatear meu ventre, do jeito que só ela sabia fazer, com uma expressão concentrada.
- Você ficou triste de repente, Lenna-san... aconteceu alguma coisa? – seus olhos levemente puxados me encaravam com brilho curioso. Deitei a cabeça no travesseiro, olhando pro teto.
- Não foi nada... apenas lembrei da Lilium... – suspirei. – Ela daria tudo pra estar no seu lugar, esperando pro um sobrinho com uma ansiosidade talvez até maior que a minha. Me pergunto como ela está agora...
- Não se preocupe, ela está bem... Pietro-kun está cuidando dela. Ele é da Milícia, pode informá-la perfeitamente sobre tudo o que descobrir... Ela parecia bem mais animada da última vez que a vi. Lembro que quando você foi embora foi um baque tão grande pra ela...
- Já chega, Kyrie, não quero mais falar disso. – interrompi. O aperto se tornava mais forte a cada segundo. – Já soube o que precisava saber.
A menina concordou com a cabeça e voltou a se concentrar no exame. Algum tempo depois, voltou a me chamar.
- Pelo que eu vi, parece estar tudo em ordem... basta não forçar muito a situação daqui em diante.
- Depende do que você quer dizer com “forçar”.
- Forçar significa se meter em encrenca e em confusão. Por exemplo: ser presa, brigar, se exaltar, se envolver demais com produtos químicos ou tóxicos, beber...
- Até isso?! – pulei de repente na cama. – Não vou poder beber durante todo esse tempo?
- Pode beber se quiser, mas depois não venha me culpar se seu filho nascer com alguma anormalidade. – ela se levantou e foi em direção à porta. – Está muito cansada? Robby está aí, queria conversar com você...
- Achei que tivesse vindo sozinha.
- Não, ele queria bater um papo com Roberuto-san. Você sabe, queria por o papo em dia com o irmão... mesmo porque se você lembrar, ele também vai ser tio daqui a pouco tempo. Ele ficou preocupado quando soube que você foi presa, sabe? Então, se não estiver muito cansada...
- Não se preocupe, está tudo bem. – levantei também, me espreguiçando. – Gosto de receber visitas...
Fomos até a cozinha, onde os dois papeavam. Havia duas xícaras jogadas na mesa: como sempre, Kyrie não tinha perdido tempo e foi logo fazer chá, mesmo sendo visita. Robby discutia alguma coisa empolgado, enquanto Roberuto apenas escutava tudo atentamente, com o semblante sério de sempre.
- Ah, e aí está a futura mamãe! – o mais velho sorriu excitado, apontando um dedo pra mim àquela maneira dele. Apenas dei um tchauzinho com a mão. – Nossa, o que foi todo aquele fuzuê do Shora por sua causa? Que loucura... ainda bem que esses dias não fui fazer nada praquelas bandas.
- Ué, e porque a preocupação? – sentei em uma cadeira ao lado de meu marido, enquanto Kyrie ia direto pro fogão providenciar mais chá. – Você nem tentou matar o homem...
- É, mas ele prendeu você, não foi? Nossa, se eu tivesse posto meus pés lá, só de ver aqueles guardas vestidos de urubu eu ia querer entrar lá no castelo quebrando tudo e gritando “Bora, podem passar minha cunhadinha pra cá!”.
A sacerdotisa riu, enquanto seu marido brincava de abater soldados invisíveis.
- E você tem mesmo que me chamar de cunhadinha?
- Tenho. – ele respondeu, depois voltou a distribuir machadadas no ar.
- Ora vamos, é só uma forma carinhosa de lhe chamar, Lenna-san! – ela colocou mais 4 xícaras cheias de chá quentinho em cima da mesa. – mas mudando de assunto... sobre o que estavam discutindo, vocês dois? A conversa me pareceu meio séria...
- Qualquer coisa é séria quando esse aí tá no meio, amor. – o ferreiro apontou para o irmão, que não disse nada. Apenas tomou seu gole de chá e se virou pra mim.
- Robby e eu estávamos conversando a respeito da sua segurança. Essa captura foi muito repentina, nos pegou de surpresa, e com essas suas missões pelo Moore você anda muito vulnerável. E essa é a última coisa que quero a essa altura do campeonato.
- Veja bem baby, - o próprio Robby tomou a palavra. – a Milícia anda doida pra por as mãos em você, e o velho lá também não liga muito pra sua vida contanto que você o ajude a reviver Morroc. E se isso já é perigoso normalmente, imagina com um filho na barriga! Ixi... não quero nem pensar se alguma coisa acontece com vocês dois.
Encarei os dois, pensativa. Eles estavam mesmo falando a verdade; qualquer coisa que acontecesse comigo daqui pra frente poria em sério risco tanto a minha vida quanto a da criança. E isso seria um problema se eu queria mesmo ser mãe.
- Bem, e qual é o veredicto?
Roberuto deu de ombros.
- Ainda estamos pensando numa solução. Claro, eu estarei sempre de guarda aqui, qualquer coisa que atravessar aquela porta pra tentar encostar em você será picada em pedacinhos. Mesmo assim, você não pode mais ficar isolada aqui... os exames da Kyrie são meio superficiais...
- Ei! – a garota berrou em protesto. Seu marido sorriu e foi até ela, abraçando-a. O mercenário não deu ouvidos.
- ... Temos que ter toda a atenção possível pra tratar de você. Além disso, - ele olhou o casal a meu lado. – vocês acabaram de se mudar, precisam de um tempo pra curtir essa nova vida. Kyrie não pode ficar à nossas disposição 24 horas por dia.
- Tem razão... – concordei. Tomei um gole de chá. – Mas então, qual seria a solução? Eu... eu não confio em mais ninguém... Lilium não pode se envolver nisso, e Pietro é o único a quem ela ainda escuta... o que vamos fazer?
- Bem, foi exatamente nessa parte que eu parei. – Robby voltou a se pronunciar. – Eu e a Kyrie-chan discutimos isso ontem à noite, e pensamos em uma solução pra vocês. Só não sei se vai dar muito certo...
- E o que seria? – perguntei.
- Se mudar.
Encarei o ferreiro por alguns segundos.
- Faz... faz idéia do que está dizendo? Você quer me tirar da segurança de uma casa segura e bem escondida aqui no meio do deserto de Sograt, pra um covil de pedra onde a coisa que mais tem é gente querendo me matar?
- Epa, epa, epa. – ele sacudiu as mãos em negação. – Vamos parar por aí. Você comete um leve erro, cunhadinha: eles não querem a você, só querem a Lenna Monbars.
- ... Que por acaso, sou eu. Onde está a genialidade disso? – eu não estava entendendo bulhufas, mas Roberuto se mexeu de um jeito que sinalizava compreensão.
- Pense, cunhadinha. E se por acaso você não fosse Lenna Monbars, eles iriam continuar te perseguindo?
Então a ficha caiu. Olhei os dois, Robby com o sorrisinho sacana de sempre, Kyrie sentada a seu lado com um sorriso aberto e espontâneo.
- Um... disfarce?
- A idéia não é de todo ruim. Se conseguirmos mesmo nos estabilizar com a nova identidade, estaremos seguros por um bom tempo, talvez não só até a Lenna ter o filho. – Roberuto me encarou. – E não é só isso. Poderemos viver como pessoas normais...
Ele disse exatamente as palavras mágicas. Tudo aquilo que eu queria.
- Ah, não, peraí, dá um tempo! – levantei, batendo o punho na mesa. – Vocês fazem idéia do que estão me sugerindo? E se... e se tudo der errado? E se Ryan cansar de mim, e resolver me entregar pra Milícia? Aliás, e se ele mesmo vier atrás de mim. E se... aliás, pra que cidade nós iríamos mesmo?
- Isso é fácil! – Kyrie levantou e tirou um mapa-múndi de trás de si. Afastou as xícaras e desenrolou-o sobre a mesa, usando os pires para segurar o papel. – è só escolher uma cidade, um nome falso, e voilà, vida nova!
- Literalmente... – completou Robby.
Roberuto e eu nos debruçamos por alguns segundos sobre o mapa, olhando cada canto, cada cidade, cada quadrante. Seu irmão foi o primeiro a falar.
- Que tal Aldebaran? É uma cidade boa o bastante, não é lá muito grande, mas vive sempre cheia...
- Não, já passei tempo pra uma vida inteira lá. – respondi. – E sinceramente, não sei se quero voltar um dia.
- E se fosse Geffen? – sugeriu Kyrie.
- Só se você quiser que eu seja pega. Pietro é bruxo, vai pra lá constantemente. A chance de nos encontrarmos lá é grande.
- Bem, nesse caso... – ela foi riscando as cidades em um papel à parte. Olhou para o mapa novamente. – Prontera não, Morroc menos ainda... e se fosse Comodo?
Dessa vez foi Roberuto que sacudiu a cabeça.
- Lenna era freqüentadora assídua de todos os cassinos e tavernas de lá. Seria loucura ir pra lá.
- Bem, praticamente nenhuma das cidades de Rune-Midgard serve então... – a sacerdotisa analisou o papel em suas mãos. - Alberta é reduto de mercadores, qualquer um deles poderia contar a Lilium que você foi vista. Izlude é a sede dos Chamas, nem pensar. Hmm... Payon fica aqui pertinho...
- Marienne. – disse simplesmente. Ela entendeu o meu recado e riscou o nome na lista, chateada. Robby espiou a lista por cima do ombro da amada.
- Olha só, e se você fosse pra um dos reinos aliados? Sabe, Louyang, Kunlun... e se você quiser ficar em Amatsu, acho que a Kyrie ainda tem uma casinha por lá...
- Pietro vive viajando pra Louyang também, Ayothaya também não me é estranha, e Akahai e Hitori são Amatsunianos. Não seria uma boa se meter pra lá... mesmo porque eu não conseguiria me adaptar aos hábitos deles.
Kyrie fez uma carinha de descontentamento por ter falado de seus hábitos natais. Mesmo assim, disfarçou e olhou no mapa mais uma vez.
- Veins? – sugeriu Roberuto, pensativo. – É longe o bastante...
- Até demais. – suspirei. – Ah vamos, não é possível que não tenha uma opção cabível...
A baixinha, então, suspirou e me encarou.
- Nesse caso, só tem uma opção cabível pra você.
- Que seria...
Ela deixou o dedo branco correr no mapa, parando em cima de uma certa cidade.
- Lighthalzen.
Engoli em seco.
- Ah, não... não tem outra? Einbroch... Juno... qualquer uma! Tem que ser logo essa?
- Einbroch é poluída demais, iria fazer mal pra criança. Juno é a capital da República, é uma das cidades mais seguras. E Rachel é uma cidade sagrada, você não pode por os pés lá... sinto muito, Lenna-san...
Desabei na cadeira e suspirei. Minha única opção de ter uma vida normal era justamente na cidade onde meus piores traumas residiam. Roberuto me confortou, esfregando meus braços.
- Não se preocupe com isso agora. A cidade não é a mesma de quando você era criança. Muita coisa deve ter mudado... e você também. Confie em mim, vai dar tudo certo...
Fechei os olhos e suspirei mais uma vez.